Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia
Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção
Medicamentos e percepções sociais do risco Noémia Lopes
Nas sociedades modernas os medicamentos têm um espaço cada vez mais amplo na
gestão quotidiana da saúde. A análise das relações leigas com estes meios terapêuticos, das percepções sociais sobre o seu risco e das modalidades de o gerir, constitui um domínio sociológico privilegiado para dar conta das mudanças em curso no campo da saúde.
O objectivo da presente comunicação é fundamentar como os alertas periciais em
matéria de saúde, embora modelem os comportamentos sociais e lhes imprimam uma crescente dependência dos sistemas e dos agentes profissionais, tal não invalida que, paralelamente, se verifique um reactualizar das formas de autonomia e de protagonismo leigo na gestão das opções terapêuticas. Com efeito, a crescente dependência da pericialidade tem gerado novas possibilidades de apropriação leiga das referências e dos recursos periciais – de que a relação com os medicamentos é uma clara ilustração – dando lugar a um quadro de novas complexidades sociológicas.
O suporte para esta abordagem resulta de uma investigação já concluída, sobre práticas
e racionalidades de automedicação (Lopes, 2003). O respectivo universo empírico foi constituído por um total 309 indivíduos, situados nas faixas etárias entre os 18 e os 64 anos. A recolha de informação realizou-se em duas etapas: a primeira com a aplicação de um questionário ao total dos participantes, e a segunda com entrevistas em profundidade a 50 dos inquiridos. Medicalização versus farmacologização: A dependência leiga da pericialidade
O novo protagonismo que os medicamentos têm assumido nos universos leigos está
indissociavelmente ligado ao desenvolvimento de dois fenómenos sociais específicos da modernidade: um, é o da medicalização das sociedades modernas, o outro, que acaba por ser um derivado social deste primeiro, é o da farmacologização da vida quotidiana.
O fenómeno da medicalizaçãoestá relacionado com a crescente expansão da
intervenção da medicina nos domínios mais privados da vivência humana. Embora se trate de um fenómeno que começou a esboçar-se com a própria organização moderna da medicina como profissão – portanto, no decurso do sec. XIX – é sobretudo na segunda metade do séc. XX que a medicalização se manifesta com maior visibilidade social. É a partir deste período que um leque crescente de situações e comportamentos que até então eram exteriores ao campo da intervenção médica vão sendo progressivamente incorporados no âmbito da sua intervenção profissional. É o caso da medicalização de comportamentos conotados com o desvio social – tais como o alcoolismo, a violência, ou a toxicodependência – estendendo-se até aos mais recônditos domínios de resistência à intrusão clínica, tais como a sexualidade, a reprodução, a menopausa, a obesidade (.). Enfim, um leque crescente de esferas do âmbito privado e público que progressivamente foram transitando para o foro da intervenção médica. E pode acrescentar-se, ainda, a esta espiral de hegemonia médica, a própria medicalização do que correntemente é designado de prevenção e de promoção da saúde, se atendermos a toda a panóplia de exames e rastreios clínicos regulares a que as mesmas têm vindo a ser associadas.
Porém, o fenómeno da medicalização não se materializa apenas nesta progressiva
expansão da intervenção da medicina. A consolidação do fenómeno prende-se sobretudo com o que os teóricos da sociologia da saúde têm designado como a disseminação cultural da própria
1.Noémia Lopes; Socióloga; Investigadora do CIES; Docente do Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz e da Escola Superior de Saúde Egas Moniz. E-mail:[email protected] 2 Este projecto decorreu pelo CIES/ISCTE, tendo sido financiado pelo INFARMED e pela FCT/MCT (POCTI/SOC/36479/99).
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ideologia médica (Crawford, 1980). Tal disseminação é expressa no modo como as categorizações e concepções médicas de saúde e doença se têm difundido nos universos leigos: no modo como a população recorre a essas categorias e concepções; como as rearticula com os tradicionais sistemas de referência leiga; e como passa a mobilizá-las para interpretar e objectivar as suas vivências concretas no âmbito da saúde e da doença.
Paralelamente ao disseminar da medicalização foi-se desenvolvendo esse outro
fenómeno designado como farmacologização. Trata-se de algo que tem sido relativamente descurado na reflexão sociológica, mas, porventura, é tão ou mais relevante do que o precedente fenómeno para a compreensão das práticas leigas de gestão da saúde e da doença, e em particular das que respeitam às relações leigas com os medicamentos.
A farmacologização remete para a dominância dos medicamentos nas opções
terapêuticas, tal como a medicalização remete para a dominância das concepções médicas na interpretação da saúde e da doença – constituem dois processos socialmente indissociáveis, mas que importa manter analiticamente separados.
A maior frequência dos contactos da população com os cuidados médicos – resultante
quer do próprio efeito da medicalização e do consequente aumento de situações que passaram a ser objecto de procura de cuidados; quer ainda por efeito da universalização dos sistemas de saúde e do acesso generalizado que a população passou a ter aos cuidados médicos – foi induzindo uma crescente familiarização leiga com os medicamentos. O lugar destes meios terapêuticos nas práticas comuns de controlo da saúde e da doença foi sendo assim progressivamente ressocializado.
Em consequência, começou também a operar-se uma mudança no estatuto do
medicamento. Se tradicionalmente tal estatuto correspondia ao de um bem esotérico e raro – como o definiu Van deer Geest e White, (1989), salientando que se tratava de algo pouco familiar, só usado excepcionalmente, e que estava simbolicamente associado a sintomas considerados graves –; esse mesmo estatuto foi sendo substituído pelo de um bem exotérico e comum – isto é, algo que passou a ser familiar e facilmente acessível, tornando-se recorrentemente utilizado, já não apenas para sintomas considerados graves, mas antes para qualquer sintoma independentemente da sua gravidade.
É uma mudança de estatuto que não se confina aos limites da relação com o
medicamento. Dois outros autores, Vuckovic & Nichter (1997), salientam que a crescente acessibilidade destes meios terapêuticos e o seu generalizado uso também tem alterado as próprias definições do que é considerado normal ou natural nos sintomas do corpo. Enquanto que tradicionalmente o recurso ao medicamento estabelecia, nos universos leigos, a fronteira entre o normal e o patológico, entre o natural e o estranho, a crescente medicalização e farmacologização esbateram e reconverteram essas fronteiras.
Por outro lado, esta reconfiguração do espaço social do medicamento no quotidiano
veio também redefinir as formas de dependência leiga relativamente aos agentes periciais da saúde. A dependência do médico começou gradualmente a deslocar-se para a dependência do medicamento. Refira-se, a propósito, duas metáforas que expressam bem este inverter de dependências: a tradicional metáfora, criada por Balint (1970) nos anos 50, com a expressão “omedicamento é o médico”, pretendendo assim simbolizar o efeito terapêutico da própria relação médica; e mais tarde, a sua inversão, formulada por Cockx nos anos 80 (in Van deer Geest e White,1989), substituindo-a pela metáfora “o médico é o medicamento”, pretendendo assimsimbolizar as novas formas de dependência em torno deste meio terapêutico.
Com efeito, é sobre os medicamentos que recaem as expectativas de cura ou de alívio,
expressas no facto de que, em muitas circunstâncias, o recurso a estes meios terapêuticos constitui a primeira opção leiga para a gestão dos sintomas. Em geral, só quando estes últimos não regridem é que então é tomada a decisão de procurar cuidados médicos – sendo que, também essa procura é orientada pela expectativa de que sejam prescritos outros medicamentos mais eficazes do que os inicialmente usados. E ainda, e novamente, são os medicamentos que funcionam como recurso para resolver situações e formas de mal-estar que convencionalmente eram solucionadas no espaço dos saberes domésticos e dos designados tratamentos caseiros.
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Feito assim o breve traçado do novo quadro sociológico das relações leigas com os
medicamentos, é pois o momento de se considerarem os respectivos efeitos sobre as modalidades de controlo e de gestão do risco atribuído a estes meios terapêuticos. Medicamentos e risco: Lógicas de controlo e de gestão leiga
Apesar da crescente presença dos medicamentos no quotidiano e, portanto, da crescente
familiaridade leiga com estes meios terapêuticos, tal não significa que os mesmos tenham perdido a sua tradicional conotação com o risco. Tanto ao nível dos discursos periciais, quanto dos discursos leigos, os medicamentos continuam invariavelmente associados ao risco. É por referência à ideia de risco que lhes é atribuída a identidade que os singulariza como objectos terapêuticos e que é estabelecida a sua dissociação de meros objectos de consumo. As conotações de risco assumem, assim, uma função de regulação social nos modos de consumo e de relação com os medicamentos.
Expressões como as de que “os medicamentos para fazerem bem a uma coisa podem fazer mal a outra” foram recorrentes ao longo das entrevistas realizadas na investigação já mencionada, como o são, aliás, na generalidade dos contextos e circunstâncias quotidianas em que os medicamentos são assunto. E o que este tipo de expressões enuncia é o facto de que as percepções sociais sobre os medicamentos se estruturam em torno de uma dualidade entre benefícios e riscos: enquanto que os benefícios fundamentam o seu uso, os riscos são o fundamento evocado para a necessidade de um estrito controlo cognitivo e prático do consumo de que são objecto.
Embora as percepções sobre o potencial risco dos medicamentos se organizem, em
grande medida, por referência aos discursos periciais instituídos, ainda assim, tal não significa que se esteja perante uma estrita subordinação das percepções leigas aos veredictos profissionais. As lógicas sociais que organizam tais percepções comportam outros critérios de referenciação, de natureza simbólica e prática, em torno dos quais vão sendo produzidas diferentes formas de autonomia e de dependência leiga relativamente à discursividade dos sistemas e agentes periciais.
Como se pôde constatar na investigação realizada, um dos critérios de avaliação leiga
do risco dos medicamentos é o facto destes estarem ou não sujeitos à obrigatoriedade de prescrição médica. Tal obrigatoriedade funciona como um padrão de medida do risco, no sentido em que os medicamentos sujeitos a prescrição são encarados como comportando maior risco, e por consequência como algo que requer maiores cautelas na sua utilização. Quando se restringe a abordagem a este ângulo de leitura – isto é, ao efeito da prescrição médica – de facto as percepções leigas do risco afiguram-se como um derivado directo das próprias categorizações periciais. Porém, quando se aprofunda este campo, começam a emergir outras mediações simbólicas na avaliação leiga do risco dos medicamentos que acabam por relativizar o efeito social da prescrição médica como referência central na percepção do risco.
É o caso das categorizações comuns relativas ao potencial terapêutico dos fármacos, as
quais são elaboradas em torno de uma semântica de distinção entre medicamentos fortes e medicamentos fracos. É uma distinção que passa pelo escrutínio da acção mais ou menos rápida dos medicamentos, ou da própria gravidade atribuída aos sintomas ou à doença a que se destinam, ou ainda dos seus efeitos secundários imediatamente mais perceptíveis. E é na familiaridade com o uso dos medicamentos que estas distinções se alicerçam, e que os escalonamentos do risco se produzem, e não apenas em função do critério da prescrição médica. Uma ilustração deste modo de escalonamento pode ser depreendida dos seguintes excertos de entrevista:
“.os antibióticos são medicamentos muito fortes, e por isso têm geralmente efeitos imediatos óptimos. o que me preocupa são os efeitos a longo prazo. por isso, sempre que posso evito-os.” (mulher, 43 anos, curso superior, entrev.6)“.eu tenho ali uma caixa cheia de remédios.daqueles vulgares., para as gripes, para as dores de cabeça, e assim essas coisas comuns. e quando preciso vou lá e tomo (.). Mas Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia
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pronto., faço isso porque aquilo para mim nem são remédios. confesso que há assim alguns remédios, que são tão vulgares que eu nem os considero remédios.” (mulher, 39 anos, curso superior, entrev.13)
Outro dos critérios de escalonamento do risco, que também se encontrou, é o da
diferenciação dos medicamentos em função do seu carácter mais ou menos invasivo. É um parâmetro que dá lugar a uma dicotomia entre medicamentos de aplicação externa e medicamentos de aplicação interna. A representação de que o uso externo salvaguarda o organismo dos potenciais malefícios que qualquer substância farmacológica possa comportar, leva a que este tipo de medicamentos sejam geralmente associados a um menor risco do que os medicamentos de uso interno. Também ilustrativo desta dissociação entre o interno e o externo, como referência estruturante das representações do risco dos medicamentos, é o seguinte excerto:
“(.)eu tenho para mim que as pomadas são sempre medicamentos menos perigosos do que os comprimidos; sempre é uma coisa externa, que podemos usar com menos preocupação. Ao passo que os comprimidos entram cá para dentro, e aí já é mais perigoso (…)” (homem, 57 anos, <9ºano, entrev.22).
Embora aqui se trate de um excerto relacionado com a percepção do maior ou menor
risco da automedicação em função do tipo de medicamentos usados, não deixa de enunciar uma genérica simbolização do universo farmacológico e de lhe imprimir um escalonamento social do respectivo risco. E sobretudo, assinala o modo como esse escalonamento é elaborado em função da possibilidade de um controlo mais ou menos directo sobre a acção dos medicamentos.
Ainda outro padrão encontrado foi o da diferenciação entre medicamentos para o corpo
versus medicamentos para a mente. Uma vez mais, também nesta forma de dicotomia, é a maior ou menor possibilidade de controlo leigo do risco que surge como o critério de contraste. Enquanto que a acção dos medicamentos sobre o psiquismo humano se apresenta como algo de elevada opacidade para o escrutínio leigo, a acção dos medicamentos para o corpo é entendida como algo mais tangível e decifrável na própria materialidade das respostas corporais. E é perante essa possibilidade de decifração – concretizada na leitura directa dos sintomas – que é recuperado um sentido de controlo prático sobre o próprio risco. Como ilustração, considere-se o seguinte excerto:
“(.)eu também tomo tranquilizantes, e alguns até bastante fortes.ainda agora andei a tomar Prozac que o médico me receitou. Mas tenho mais medo desses comprimidos do que os que tomo para a hipertensão. pode parecer uma parvoíce. mas eu fico a pensar o que é que aquilo faz na minha cabeça para me pôr mais bem humorada.” (mulher, 39 anos, 11º ano, hipertensa, entrev.25)
Ora o que estas diferentes categorizações permitem demonstrar é justamente a
plasticidade social de que são dotadas as percepções leigas do risco dos medicamentos. E é essa mesma plasticidade – expressa no escalonamento social de que o risco é objecto e nos critérios sociais que o organizam – que configura as percepções leigas como irredutíveis a um mero efeito directo das categorizações periciais sobre os medicamentos e o seu risco.
É também esta plasticidade social que se encontra quando se desloca o enfoque das
percepções leigas do risco para as estratégias leigas da sua respectiva gestão.
Tal gestão passa, desde logo, por uma estratégia de socialização do próprio risco. Ou
seja, uma estratégia de o inserir num quadro de inteligibilidade que o torne passível de um controlo leigo prático, e que assim o confine a probabilidades residuais de ocorrência.
O modo como se opera esta gestão assume várias expressões. Todas elas, porém,
comportam específicas formas de articulação entre a confiança na pericialidade e essa outra confiança que Giddens (1992) designa como confiança básica – isto é, a confiança que é
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produzida pela própria rotinização das práticas e pela redução da imprevisibilidade que a rotinização produz.
Quanto às diferentes estratégias encontradas neste domínio, foram sistematizadas em
Uma delas, que se categorizou como reconversão do risco, assenta numa rotinização
das práticas – concretizada em comportamentos de fidelização a determinados medicamentos com os quais foram obtidos resultados desejáveis – produzindo assim uma confiança básica na respectiva opção terapêutica. Nestes casos, trata-se de uma estratégia em que a confiança básica se sobrepõe à própria confiança na pericialidade, como o pode ilustrar o seguinte excerto:
“(.)eu agarro-me muito aos medicamentos a que já estou habituada, porque esses já sei os efeitos deles (.) Aqui há tempos a médica quis mudar-me os medicamentos, e eu disse logo que não, e ela disse “mas esses que toma são mais caros” e eu disse-lhe “está bem, não faz mal.mas eu antes quero estes porque me tenho dado bem com eles” e não deixei que ela mudasse (mulher, 45 anos, <9ºano, entrev.14)
Outra categoria identificada remete para a relativização do risco. Aqui está-se perante
situações em que o uso de determinado medicamento é considerado como comportando riscos efectivos, mas que são considerados como inevitáveis para a gestão de outros riscos considerados mais graves. É sobretudo o caso perante sintomas ou doenças cuja gravidade é entendida como um risco maior do que aquele que os próprios medicamentos possam comportar. Nestas circunstâncias, a confiança básica cede geralmente lugar à confiança na pericialidade, conduzindo a uma opção entre riscos: a opção entre o risco dos medicamentos ou o risco da doença; figurando como mais comum esta última enquanto factor decisivo na opção a tomar.
A opção entre riscos pode assumir ainda outros cambiantes, em que nem sempre a
confiança na pericialidade desactiva a confiança básica. Quando o quadro é menos hermético para os universos leigos do que o que se verifica perante estados de saúde que escapam às possibilidades de controlo leigo, aí a opção entre riscos é feita com base num novo reequilíbrio entre confiança básica e confiança na pericialidade. É o caso, frequentemente encontrado ao longo das entrevistas, da alteração das posologias prescritas pelo médico, ou mesmo da interrupção dos tratamentos, quando, por exemplo, estes induzem efeitos secundários considerados demasiadamente nefastos, ou ainda quando há o medo de criar habituação aos medicamentos. Mesmo quando tais opções são confrontadas com as advertências médicas sobre outros riscos que possam advir do não cumprimento das prescrições, não raro a opção entre riscos é encaminhada para um comprometimento alternado entre confiança na pericialidade e confiança básica – ou seja, entre um atento controlo leigo da evolução dos sintomas e um retomar, ou não, das orientações periciais, consoante o agravamento ou estabilidade desses mesmos sintomas.
Ainda uma outra forma de acção que introduz uma lógica diferente de qualquer das
anteriores, no que respeita à articulação entre confiança básica e confiança na pericialidade, é a que se categorizou como monitorização virtual do risco. Aqui a confiança na pericialidade é transformada em recurso leigo de pericialidade – isto é, as orientações médicas são assimiladas e usadas como referências na gestão leiga de situações posteriores aquela em que as orientações foram produzidas.
É uma estratégia de gestão do risco que se observa sobretudo no âmbito da
automedicação: a substancial maioria dos medicamentos usados em automedicação são medicamentos que foram prescritos pelo médico em circunstâncias anteriores, ou recomendados pelo farmacêutico. No caso da investigação que está na base desta análise, tal modalidade de automedicação representava 64% do total das situações registadas (Lopes, 2001;2003).
O controlo pericial directo é, deste modo, substituído por um controlo pericial virtual.
Ou seja, as recomendações periciais são apropriadas e simultaneamente transformadas em recurso leigo, o qual passa a ser accionado para controlar as probabilidades de risco das iniciativas pessoais que recaem fora dos contextos da supervisão profissional.
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A este propósito importa também reequacionar o enquadramento que Giddens (1992)
tem sustentado relativamente à confiança leiga na pericialidade.
Para este autor, a confiança na pericialidade representa nas sociedades actuais, e perante
a crescente consciência do risco, um dos recursos básicos de que os leigos se socorrem para a monitorização e redução das incertezas do risco. Ora, no caso concreto da relação leiga com o risco dos medicamentos, parece verificar-se algo mais do que esse confinamento a que Giddens circunscreve a confiança na pericialidade. O que se constatou é que tal confiança não se esgota num mero efeito de restituição da segurança leiga face ao risco, vai mais longe… Isto é, o próprio processo de construção social da confiança nos sistemas e agentes periciais produz novas condições de protagonismo leigo na gestão do risco; designadamente na medida em que essa confiança é transformada em recurso leigo de pericialidade. É este expurgar do sentido passivo geralmente associado à confiança na pericialidade que permite restituir visibilidade ao novo espaço de protagonismo leigo na gestão prática do risco, bem como às formas de autonomia que nesse protagonismo se reactualizam.
Como conclusão, e reconduzindo ao âmbito específico em análise, importa ainda
salientar que, tal como relativamente às causas das doenças existem, a par das epidemiologias periciais, as epidemiologias leigas (Davidson, et al, 1991), também relativamente ao risco dos medicamentos existem, a par das farmacovigilâncias periciais, múltiplas modalidades de farmacovigilâncias leigas. E são estasque configuram no quotidiano os quadros de inteligibilidade prática, nos quais se inscrevem e redefinem, em cada situação concreta, os escalonamentos leigos do risco dos medicamentos e das respectivas possibilidades leigas de o controlar. Bibliografia:
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