Revista de Ciências Humanas e Artes ISSN 0103-9253
Literatura brasileira na formação docente*
Este trabalho analisa o distanciamento entre o ensino de Literatura Brasileira nos cursos
de Licenciatura em Letras-Português e a prática docente que se exige na Educação Bá-
sica, especialmente no Ensino Médio. Apresenta-se um esboço de panorama histórico, a
partir dos anos de ditadura militar, em que as universidades, em sua maioria, optaram
pela defesa da autonomia da literatura frente aos fatos políticos, abordando os textos
através da perspectiva dos estilos de época, difundidos no Brasil por Afrânio Coutinho.
A análise evidencia que, após os anos 1980, a opção pelo relativismo inerente ao pen-
samento Pós-Moderno e pelo falso compromisso político da Literatura Comparada vie-
ram a reduzir a presença da Literatura Brasileira na Educação Básica, por terem os livros
didáticos permanecido fiéis aos estilos de época e por não terem os novos professores
formação literária nem material didático como suportes para sua prática que, em vez de
renovar-se, distancia-se cada vez mais de seu possível alcance estético e social. Palavras-chave:Ensino. Formação Docente. Literatura Brasileira.
Brazilian literature in teachers’ formation ABSTRACT
This work aims to analyze the distancing between the teaching of Brazilian Literature
in the college teaching courses of Languages – Portuguese and the teaching practice
required from teachers in Primary Schools as well as in Junior High Schools. It presents
a draft of the historical panorama of the dictatorship years, during which most of the
universities decided for the autonomy of literature facing the political facts, viewing
the texts through the perspective of period styles, a theory spread in Brazil by Afrânio
Coutinho. The analysis shows that, after the 1980’s, the option for the inherent relativism
of the postmodern thought and for the false political commitment of compared literature
caused a reduction in the presence of Brazilian Literature in Primary and Junior High
Schools due to the fact that the didactic materials remained faithful to the period styles
and also because the graduating teachers did not have neither literary nor didactic
materials to support their practice, which, instead of renewing itself becomes more
Graça Paulino Key words: Teaching. Teacher’s Formation. Brazilian Literature.
Doutora em Letras pela UFRJ. Professora da Faculdade de
Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Edu-
cação, Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino. Av.
Antônio Carlos 6627, Pampulha. CEP 31270-901 – Belo
Ariús, Campina Grande, v. 13, n. 2, p. 143–146, jul./dez. 2007 Graça Paulino
Entendemos como formação docente, em sentido visão da literatura (e das artes em geral) do ocidente ci-
estrito, o conjunto de disciplinas e práticas pelas quais vilizado como uma evolução hegemônica de estilos, não
passa um aluno de Licenciatura, curso superior que visa mais fundados em escolhas subjetivas dos autores, mas
à formação de professores e que se encerra com o rece- em contextos simultaneamente históricos e estéticos, por
bimento de um diploma carimbado pelo MEC, com au- isso denominados estilos de época. Desenrolando-se em
torização para docência em todo o território nacional seis volumes, com ensaios assinados por conhecidos crí-
da(s) disciplina(s) nomeada(s) pela instituição. Tal etapa ticos e professores de literatura da época, esses livros,
da graduação docente é coroada por uma cerimônia de pouco lidos, formaram a antologia crítica A Literatura no
formatura e pressupõe que os formandos tenham passa- Brasil (1968). Mas, o que iria marcar a transformação dos
do por um processo de ensino-aprendizagem que os estudos de Literatura Brasileira seria mesmo o texto in-
tenha tornado aptos a assumir a docência na Educação trodutório de Afrânio Coutinho.
Básica, pública ou privada. Esse processo universitário
Os livros didáticos, com forma condutora de orga-
se divide em subáreas de conhecimento que, por sua nização, após a multiplicação de alunos, de escolas e de
vez, se subdividem em disciplinas, compondo um qua- professores nos anos 60, assumiram essa abordagem his-
dro curricular com conteúdos, práticas, cargas horárias toriográfica, acrescentando à teoria e aos textos pergun-
tas e respostas, para “orientar” o trabalho docente. O
Nessa formação docente estrita e inicial, Literatura conteúdo das disciplinas que se denominavam Literatu-
Brasileira constitui uma subárea do currículo de Letras ra Brasileira, em qualquer nível de escolarização, do se-
que, com algumas disciplinas, faz parte do que se exige cundário ao universitário, tinha como fulcro os estilos
para a Licenciatura em Língua Portuguesa e suas Litera- de época, datados, marcados nos textos. A divulgação
turas. Em síntese, Literatura Brasileira, nos cursos de Li- deformadora do próprio pensamento de Afrânio Couti-
cenciatura em Letras-Português, tem como objetivo for- nho transformou a sucessão linear de estilos de época
mar os professores que irão ensinar no sistema escolar numa guerra infindável, em que o estilo novo superava
básico a língua e a literatura do País. Proponho-me a o velho, sempre se opondo a ele radicalmente. Os exer-
apresentar, neste ensaio1, uma visão crítica do que vêm cícios, trabalhos escritos e provas que se seguiam à lei-
ensinando e aprendendo professores e alunos de Litera- tura dos textos insistiam na comprovação da habilidade
tura Brasileira em alguns cursos de Licenciatura em Le- do estudante em “enxergar” neles as características do
tras, sem perder de vista o fato de que há diferenças sig- estilo de época a que inevitavelmente pertenciam.
nificativas entre instituições, entre professores e entre
Ora, essa perspectiva carregava – ou ainda em di-
alunos, embora tudo acabe resultando no recebimento versas escolas carrega, já que o ensino de Literatura Bra-
de um mesmo diploma, que outorga os mesmos pode- sileira não se desfez de todo dela – o que poderíamos
res e condições legais para o trabalho docente a todos chamar de determinismo formalista no modo de ler os
textos literários. Como Afrânio Coutinho explicitamente
Até os anos 50 do século passado, os estudos literá- situava seu posicionamento face à literatura dentro da
rios trabalhavam com antologias e com obras completas nova crítica, ligada ao new criticism norte-americano dos
de autores consagrados, em abordagens que transitavam anos 30, corrente defensora da autonomia da literatura
do positivismo ao impressionismo crítico, passando por ante outros fatos da vida social, criou-se, a partir da dis-
estudos filológicos, históricos, estilísticos, gramaticais e, seminação da teoria dos estilos de época, uma deter-
muito raramente, sociais, marxistas ou não. Eram pou- minação prévia da leitura, que não podia fugir à aloca-
cas escolas, poucos alunos, famílias letradas, livros sem ção do texto num estilo e à explicitação das características
perguntas e respostas. Nas universidades, os catedráti- inerentes a este. O estilo se impunha, inexoravelmente,
cos propunham direcionamentos teóricos e bibliografias ao texto literário, em verso ou em prosa. Diversos espe-
literárias. Nos liceus, os textos literários serviam princi- cialistas se dedicaram à tarefa de assim organizarem a
palmente para sustentar a teoria gramatical normativa, a história da Literatura Brasileira: Aderaldo Castelo, Soa-
análise sintática e o detalhamento biográfico dos “gran- res Amora, Domício Proença Filho, entre outros.
des” poetas e romancistas nacionais.
O que não podemos esquecer é que estávamos sob
Foi então que um professor da Universidade Fede- um regime de ditadura militar. Os professores universi-
ral do Rio de Janeiro, Afrânio Coutinho, publicou um tários marxistas em ação foram aposentados compulso-
livro, Introdução à Literatura no Brasil, propondo uma riamente em 1968, exatamente o ano da publicação de
1 Uma versão preliminar deste ensaio foi apresentada, em mesa-redonda, no V SELIMEL – Seminário Nacional sobre Ensino de Língua Materna e
Estrangeira e de Literatura, realizado em Campina Grande – PB, em junho de 2007. Ariús, Campina Grande, v. 13, n. 2, p. 143–146, jul./dez. 2007 Literatura brasileira na formação docente A Literatura no Brasil. O medo grassava nas universida- rida nos Estudos Culturais pós-estruturalistas, a Literatu-
des, ao lado das passeatas estudantis. Podia-se falar na ra Comparada negou o caráter estético da recepção lite-
função social da literatura apenas em teoria. Autores rária, tornando objeto desta não mais os textos com suas
subversivos eram censurados e perseguidos. Assim, nada especificidades de construção e criação, mas suas rela-
melhor que se voltar para uma história da literatura que ções interculturais, de base temática: gêneros, etnias,
evidenciava a textualidade de contextos estilísticos, bus- minorias, referências contextuais globalizadas, suportes
cando antes de tudo formar, acima dos poderes políti- tecnológicos, fronteiras, entre outras.
cos e econômicos, leitores sem perspectivas destes, por
A inserção dos alunos de Licenciatura em Letras no
contexto acadêmico da Literatura Comparada exigiria
François Dosse, em sua História do Estruturalismo leitura contínua de autores contemporâneos, de várias
(1993), marca 1967 como o ano em que se iniciou o nacionalidades, tanto no que diz respeito à literatura
que chama de o canto do cisne, paradoxalmente tam- quanto a certos textos de áreas de conhecimento com
bém um marco do fortalecimento de seus pensadores, que seus estudos dialogam, especialmente a Antropolo-
que a partir de então tomam espaço nas Escolas de Al- gia, a Filosofia e a Sociologia. Sem alcançar a idade, as
tos Estudos e começam a ser traduzidos para diversas dimensões e o aprofundamento da velha Teoria Literá-
línguas. Diz que Foucault estava fora de Paris em 1968 e ria, a Literatura Comparada já exigiria dos leitores um
de suas passeatas, escrevendo Arqueologia do Saber (tra- vasto e diversificado repertório textual, que só algumas
duzido para o português em 1972). Entre nós, os estru- vezes seria conseguido de modo coerente na Universi-
turalismos, já que nunca houve um movimento unifica- dade, por parte dos próprios professores, como no exem-
do, também começam a ficar mais fortes nos estudos plo de Silviano Santiago.
literários, enquanto estudantes, professores e jornalistas
A formação do professor de Literatura para o Ensino
ousados no combate político eram torturados, mortos Fundamental e Médio nos cursos de Licenciatura em
ou exilados. Nos cursos de Letras, a abordagem estrutu- Letras passa longe dessa erudição sofisticada e emposta-
ralista, negando a história através de seu universalismo da. Na maior parte das faculdades de ponta, se o velho
arquetípico, passou a conviver com a historiografia abs- historiografismo formalista desapareceu, o que os alu-
trata dos estilos de época, sem preocupações políticas.
nos estudam de literatura nada ou quase nada tem rela-
Um livro dos anos 70, hoje esquecido ou repetido ção com sua prática docente. Isso porque os livros didá-
como novidade recém-descoberta, iria também exercer ticos continuam insistindo nos estilos de época, pelos
sua sutil influência nas licenciaturas em Letras, especial- quais autores e textos são apresentados e estudados. Sem
mente no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Trata-se de a sustentação da formação universitária, os professores
Por um novo conceito de literatura brasileira (1977), de se tornam reféns dos livros adotados.
Affonso Romano de Sant’Anna, que propunha incluir o
Transformar esse quadro de crise no ensino de Li-
cordel, os quadrinhos e a música popular no que cha- teratura Brasileira exigiria consensos nas faculdades de
mávamos de Literatura Brasileira. Não foi difícil enfra- Letras sobre prioridades dos alunos que se tornarão pro-
quecer a atuação desse livro, sob o argumento de que fessores da Educação Básica. Exigiria leitura crítica dos
seu propósito era a facilitação dos estudos literários pela manuais didáticos no que diz respeito ao tratamento
que os textos literários recebem. Exigiria a formação
A queda dos estilos de época nas grandes faculda- de professores com segurança em seu processo de le-
des de Letras ocorreria apenas nos anos 80, com a en- tramento, a ponto de serem capazes de fazer suas pró-
trada em cena da glamurosa linha de pensamento de- prias escolhas literárias, a par das escolhas feitas em
nominada de Pós-Modernismo, considerada por alguns nome dos alunos adolescentes. Só leitores formam lei-
como apologia de uma hipermodernidade, em que se tores e quando o(a) professor(a) lê apenas por obriga-
radicalizou com poder total o tripé moderno de culto ao ção profissional, os alunos não têm nele(a) um modelo
mercado, ao indivíduo e à tecnologia.
Os velhos textos foram trocados por novos, numa
Um compromisso verdadeiramente crítico dos estu-
escolha que abominava critérios de qualidade literária, dos literários para com a realidade social, sem que se
considerados parte do poder da velha guarda, minoritá- negue a identidade e o tratamento estético dos textos,
ria e elitista. Criou-se uma falsa politização, a do “politi- parece ser uma perspectiva a ser considerada como sa-
camente correto”, para calar a boca dos remanescentes ída possível para o impasse que se arrasta, de variadas
esquerdistas. Apagou-se a velha Teoria Literária, substi- maneiras, desde os anos 60 do século passado. A ame-
tuída pela Literatura Comparada, como se o compara- aça de abandono da Literatura enquanto disciplina da
tismo nunca tivesse existido nos estudos literários. Inse- Educação Básica ainda ronda nossos educadores que
Ariús, Campina Grande, v. 13, n. 2, p. 143–146, jul./dez. 2007 Graça Paulino
pouco lêem e por isso pouco respeitam os textos literá- REFERÊNCIAS
rios. Diversas pesquisas dos livros didáticos do Ensino
Fundamental têm evidenciado que tal desrespeito co- COUTINHO, Afrânio (Org.) A literatura no Brasil. Rio de Ja-
meça cedo e apenas se agrava no Ensino Médio. Há, neiro: Editorial Sul Americana, 1968.
ainda, o falso acesso aos textos literários, com a recep-
ção distorcida por temas transversais, questões éticas etc. DOSSE, François. História do estruturalismo: o canto do cis-
Apenas quando o compromisso dos professores das ne, de 1967 aos nossos dias. São Paulo: Ensaio; Campinas:
licenciaturas em Letras se voltar para o que ocorre com UNICAMP, 1994.
seus alunos fora da Universidade, nas escolas da Edu-
cação Básica, com suas facetas próprias, diversas, mui- SANT’ANNA, Affonso Romano de. Por um novo conceito de
tas vezes pobres, distantes da alta cultura, poderemos literatura brasileira. Rio de Janeiro: Eldorado, 1977.
mudar esse quadro de crise, que não foi criado por um
ou outro acadêmico, mas pela maioria dos doutores que
querem lecionar na Pós-Graduação, tolerando a Licen-
ciatura apenas como um martírio inevitável ou uma “en-
Aprovado para publicação em agosto de 2007
Ariús, Campina Grande, v. 13, n. 2, p. 143–146, jul./dez. 2007
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